O Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) informou internamente em 13/05/2022 estar sem nenhuma verba de livre destinação e determinou a suspensão de atividades.
Entre elas estão os eventos de entrega de título de propriedade a beneficiários da reforma agrária, ação que virou uma febre no governo Jair Bolsonaro (PL).
Em ofício enviado no início da noite às superintendências regionais, o presidente do órgão, Geraldo Melo Filho, traça um cenário de penúria orçamentária e ordena que mesmo atividades técnicas de campo, como vistorias, fiscalizações e supervisões, devem ter autorização prévia da direção, estando vedadas "quaisquer novas ações a serem iniciadas" que envolvam deslocamento e diárias.
No ofício, o presidente do Incra afirma que as ações da autarquia tem ocorrido graças ao direcionamento das chamadas emendas de relator, que é a verba federal controlada pelo Congresso Nacional, mas que nenhum centavo dessa fonte chegou em 2022.
"Como é de conhecimento geral, as ações finalísticas do Incra têm a totalidade de seus recursos como indicador RP-9 [rubrica das emendas de relator], pendentes de indicação por parte do relator geral do orçamento", afirma Melo Filho no documento.
"Nesse cenário, já estamos no mês de maio de 2022 e, até o momento, este instituto não teve disponibilizados recursos para esse fim, pelo fato de que todo o orçamento finalístico do Incra se
encontra indisponível, e não pode ser utilizado de forma discricionária pela autarquia", completa.
Em nota divulgada na tarde do sábado seguinte, o Incra diz não ter suspendido as atividades da autarquia, embora confirme todas as suspensões noticiadas, as quais se refere como medidas de gestão com vistas à responsabilidade fiscal.
"O Incra esclarece que o ofício circular nº 731 expedido pela presidência não suspende as atividades da autarquia. Ao contrário disto, o documento trata das medidas de gestão a serem observadas para que a atuação prioritária —de supervisão e vistoria— continue a acontecer, cumpridos os requisitos da Lei de Responsabilidade Fiscal", diz o texto.
A nota afirma ainda que a suspensão de deslocamento para eventos permite priorizar as ações obrigatórias já em andamento, como "forças-tarefa e ações em estados com recursos orçamentários já aportados e eventos previamente autorizados pelas referidas diretorias".
O Incra afirma ainda na nota que "tão logo seja equacionada a disponibilidade orçamentária, assunto no qual o Incra tem recebido apoio do governo federal e do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, será feita a reprogramação das atividades da autarquia para a retomada de todas as atividades externas".
Como mostrou a Folha, a gestão Bolsonaro transformou radicalmente o programa de reforma agrária brasileiro, que em todo o seu governo foi gerido pela bancada ruralista.
Em três anos, houve uma profusão de paralisações de processos, estrangulamento orçamentário, a quase total suspensão da aquisição de terras e do assentamento de famílias, tendo o Incra direcionado seu foco a uma maratona de entrega de títulos de propriedade às famílias que foram assentadas pelas gestões anteriores.
A titulação insere-se no objetivo político de esvaziar a influência do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) sobre os assentados, além de buscar abrir uma frente eleitoral em um terreno tradicionalmente controlado pelos partidos de esquerda.
Somente até o início de maio de 2022, por exemplo, Bolsonaro já participou de sete eventos de entrega de documentos de propriedade, ocasiões em que o clima se assemelha a palanque eleitoral, com beneficiados sendo levados ao palco para receber os papéis das mãos do presidente.
Em um evento na tarde de 14/5/2022, Bolsonaro afirmou que a política adotada pelo governo fez o assentado ficar do seu lado. "O integrante do MST, o assentado, ao receber um título de propriedade, passou a ser um cidadão e ficou do nosso lado. Quando estava do outro lado, ele era obrigado a seguir orientações de João Pedro Stédile, entre outros marginais. E hoje em dia, ao receber o título de terra, passou para o lado do bem e é parceiro do fazendeiro", disse por videoconferência no lançamento da pré-candidatura do deputado federal Major Vitor Hugo (PL) ao Governo de Goiás.
Ele declarou ainda que as mudanças têm como objetivo prejudicar o MST. "Nós, desde o começo [do governo], tivemos uma política firme contra as ações das lideranças do MST, quando começamos a titular terras pelo Brasil."
Na ordem de paralisação das atividades distribuída no período, o presidente do Incra cita explicitamente os eventos de entrega de título. "Em razão da atual indisponibilidade de recursos para a execução de atividades finalísticas da autarquia, informa-se que devem ser suspensas quaisquer atividades que envolvam deslocamentos para eventos, mesmo que entrega de títulos, uma vez que os recursos deverão ser priorizados em ações entendidas como urgentes e obrigatórias pela Sede."
A Constituição determina que os beneficiários da reforma agrária devem receber documentos relativos à propriedade, inegociáveis por dez anos. Há títulos provisórios e definitivos, que são concedidos após um trâmite burocrático que envolve não só questões administrativas, como a evolução da consolidação do assentamento e da produção dos assentados.
Movimentos sociais, partidos de esquerda e especialistas são contra a política atual de distribuição de títulos. Argumentam, entre outros pontos, que feita de forma isolada e sem planejamento irá precarizar assentamentos e levar parte das terras a voltar às mãos de latifundiários e do agronegócio.
O orçamento federal para aquisição de terras desabou de R$ 930 milhões em 2011 para R$ 2,4 milhões neste ano, o mesmo ocorrendo com a verba discricionária total do Incra, que caiu de R$ 1,9 bilhão em 2011 para R$ 500 milhões em 2020.
A incorporação de terras ao Programa Nacional de Reforma Agrária, que nos governos Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de 1995 a 2010, somou quase 70 milhões de hectares, praticamente desapareceu sob Bolsonaro, assim como o número de novas famílias assentadas.
Já a entrega de títulos de propriedade provisórios ou definitivos observou um salto sob Michel Temer (MDB), logo após a edição da lei 13.465/2017, que flexibilizou o processo de regularização fundiária, e virou uma febre sob Bolsonaro, que em três anos e três meses de governo entregou 337 mil títulos, um recorde.
Fonte: FSP / UOL