“Em várias políticas a gente veio num processo de sucateamento, que agora chegou num ponto mais do que crítico”, afirma Marcela Amaral, servidora do Incra há 15 anos e diretora de Articulação e Políticas Sociais da CNASI (Associação Nacional dos Servidores Públicos Federais Agrários). Hoje, o que conseguiu ser feito a favor da desconcentração de terras no Brasil corre o risco de sofrer o processo inverso.
Olhando para a história desde a colonização, não é difícil entender por que o Brasil é um país em que 1% das propriedades maiores ocupam 47,6% da área rural. Recentemente, houve avanços em direção à desconcentração de terras, com a reforma agrária, mas o país retrocede, com a possível extinção desse processo.
Povo sem terra
O português Duarte Coelho foi dono de 9% do Brasil. O ano era 1534 e foi concedida a ele a primeira capitania hereditária doada pela Coroa Portuguesa: Pernambuco. Outros 15 lotes seriam distribuídos a seus respectivos capitães donatários. Coelho era descendente da nobreza agrária, assim como outros capitães.
A coroa também doava sesmarias, pedaços de “terra virgem”, para que o detentor as explorasse. Em 1850, a Lei de Terras aboliu a distribuição de sesmarias pelo Estado e instituiu a propriedade privada, com terras vendidas pela Coroa Portuguesa. Pequenos agricultores, que já ocupavam algumas regiões, porém sem títulos, foram expulsos da terra.
“Nós temos processos de apropriação de terras e destinação para poucas pessoas, e isso vai se sucedendo com o reconhecimento de ocupações basicamente de pessoas de origem europeia, em detrimento das populações originárias. Soma-se a isso a escravidão, em que os negros e negras reagem também fazendo ocupações em espaços de sobrevivência e de criação de comunidade”, diz Carlos Guedes, ex-presidente nacional do Incra, economista e mestre em Desenvolvimento Rural.
Na segunda metade do século XX, mobilizações pela reforma agrária começam a se desenvolver. É o caso das Ligas Camponesas, organizações formadas em 1945 para lutar por melhores condições de vida no campo. É nesse contexto que “temos, talvez pela primeira vez, um enunciado sobre a reforma agrária no governo João Goulart – que, não por acaso, sofre o golpe em 1964 – e, como resultado disso, com mediação dos militares, há uma candência do tema”, conta Guedes. Assim, em 1964 foi criado o Estatuto da Terra, determinando as linhas gerais da política agrária brasileira. Política esta que foi aprimorada e ratificada na Constituição de 1988.
O Incra foi criado em 1970 e, por aproximadamente uma década, focou em projetos de colonização da região norte do Brasil. O processo de redemocratização e aumento dos conflitos de terra levaram a uma mudança de foco do órgão, que criou o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), com o objetivo de assentar 1,4 milhão de famílias em cinco anos. Após sofrer oposição de proprietários rurais e uma série de modificações, o projeto foi aprovado em 1985. A constituição de 1988 impôs novas restrições à desapropriação de terras e, em 1990, ao final do governo Sarney, somente 82.689 famílias haviam sido assentadas.
Em 1996, o Incra se reorganizou e realizou o primeiro censo dos assentamentos de reforma agrária, além de dar início à prestação de assistência técnica para assentados. Em 2003, foi criado o II PNRA, com o objetivo de assentar 400 mil famílias.
Vale lembrar que pequenas e médias propriedades não podem ser desapropriadas pelo Incra, desde que o dono não tenha outras propriedades. O foco do órgão era a desapropriação de terras improdutivas com extensão superior a 15 módulos fiscais, com indenização para o dono ajustada ao valor de mercado e avaliação da terra. Depois de concluir esse processo, o Incra selecionava as famílias a serem assentadas. Então, cumpria a quarta diretriz da reforma agrária:
Quarta Diretriz: qualificação dos assentamentos O Incra implementará a reforma agrária buscando a qualificação dos assentamentos rurais, mediante o licenciamento ambiental, o acesso a infraestrutura básica, o crédito, a assistência técnica e a articulação com as demais políticas públicas, em especial a educação, saúde, cultura e esportes, contribuindo para o cumprimento das legislações ambiental e trabalhista e para a promoção da paz no campo.
(Diretrizes estratégicas de implementação da reforma agrária – Incra)
Para estimular o desenvolvimento dessas propriedades, existem linhas de crédito exclusivas para assentados, como os grupos “A” e “A/C” do PRONAF (Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar).
O investimento na reforma agrária, e, consequentemente, na agricultura familiar, favoreceu a produção de alimentos para o mercado nacional. A agricultura familiar é responsável, segundo o Censo Agropecuário do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2017, pela produção de 70% do feijão nacional, 34% do arroz, 87% da mandioca, 60% do leite, 59% do rebanho suíno, 50% das aves e 30% dos bovinos.
Roubo de terras
Um dos fatores que contribui para a concentração de terras no Brasil é a ação de grileiros, pessoas que se apropriam ilegalmente de terras públicas, muitas vezes já ocupadas por assentamentos da reforma agrária, indígenas ou quilombolas. A grilagem gera conflitos no campo e mantém a terra nas mãos de grandes produtores.
Em 25 de maio de 2012, a promulgação do novo Código Florestal anistiou grileiros de 41 milhões de hectares de terra, mais de duas vezes a área do estado do Pará, segundo cálculo da ONG Imazon. Em 2017, outra medida aumentou o tamanho de terras públicas passíveis de regularização de 1500 para 2500 hectares e possibilitou que áreas griladas até 2011 fossem regularizadas, o que antes era até 2004.
Com uma maior facilidade de regularização, grilar terras torna-se mais vantajoso e pode gerar mais conflitos. Entre 2012 e 2018, os conflitos por terra cresceram 20,7%, de acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra.
É nessa onda que o Projeto de Lei 2633 foi para o Câmara e, depois de aprovado no órgão, teve urgência aprovada para votação no Senado em julho deste ano. O PL aumenta de quatro para seis módulos fiscais o tamanho das terras da União que podem ser regularizadas sem vistoria prévia (realizada pelo Incra). Autor do projeto, o deputado federal Zé Silva (Solidariedade – MG), afirma que a lei vai fornecer segurança jurídica no processo de regularização de terras em áreas da União, além de estar adequada ao novo Código Florestal.
O ato de regularizar terras griladas é questionável, uma vez que, segundo a Constituição Federal, essas terras deveriam ser destinadas à reforma agrária:
Art. 188. A destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária.
§ 1º A alienação ou a concessão, a qualquer título, de terras públicas com área superior a dois mil e quinhentos hectares a pessoa física ou jurídica, ainda que por interposta pessoa, dependerá de prévia aprovação do Congresso Nacional.
§ 2º Excetuam-se do disposto no parágrafo anterior as alienações ou as concessões de terras públicas para fins de reforma agrária.
(Constituição Federal de 1988)
Para Reginaldo Aguiar, diretor de Administração e Finanças da CNASI e servidor do Incra, se aprovado, o PL tende a diminuir ou até extinguir o processo de reforma agrária no país. Outra consequência seria o aumento dos oligopólios e da concentração de terras. “Esse é um problema que a gente avalia possível de acontecer, então a aprovação leva a uma consequência terrível, e isso pode também levar à extinção do Incra, porque pode ser avaliado que o Incra não cumpriu o seu papel”, ressalta.
Os títulos
Em 2 de dezembro de 2020, foi assinada a Portaria Conjunta N° 1, que instituiu o programa Titula Brasil, executado pelo Incra com o objetivo de facilitar o processo de titulação de famílias assentadas, etapa final da reforma agrária.
“Estamos dando um grande passo para levar mais cidadania, dignidade, segurança jurídica, segurança social e segurança econômica ao campo”, disse Nabhan Garcia, secretário Especial de Assuntos Fundiários do Mapa (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) em 10 de fevereiro de 2021, data de lançamento oficial do programa. O governo defende que o título vai oferecer independência, renda e acesso a benefícios para os agricultores. Para viabilizar essas entregas, uma das definições da portaria é repassar atribuições do Incra para os NMRF (Núcleos Municipais de Regularização Fundiária), municipalizando o processo.
Para Aguiar, na verdade essa é uma maneira de regularizar a grilagem, porque, nos municípios, as lideranças políticas e econômicas dominam. “Aí, dificilmente vai ter um poder maior que possa, por exemplo, fazer uma reforma agrária”, afirma. Para ele, essa também é uma maneira indireta de colocar mais terras no mercado, pois, com o título em mãos, o agricultor pode vendê-lo.
Alexandre Conceição, da Coordenação Nacional do MST, explica que o movimento não é contra a titulação, mas é crítico em relação à forma como ela está sendo feita. Conceição defende a modalidade de titulação coletiva (Concessão de Direito Real de Uso – CDRU), que facilita a cooperação e sobrevivência do grupo, enquanto o governo tem oferecido apenas o TD (Título Definitivo), que é individual e acaba com o direito dos trabalhadores aos programas de desenvolvimento oferecidos aos assentados.
Já para Francisco Moura, assentado no Pará e membro da Direção Nacional do MST, antes de fazer a titulação, é necessário que o governo forneça infraestrutura para o assentamento, como a construção de escolas e ruas, o que não está acontecendo no momento. Moura também afirma que não é fácil terminar de pagar a terra e pegar financiamentos depois de receber o título. “A gente tem orientado nossas famílias: podem até pegar [o título], mas não é tão fácil quanto eles têm falado e a titulação tem que ser a última coisa, não a primeira”.
Esse investimento na entrega de títulos vem acompanhado de uma paralisação dos processos de desapropriação de terras pelo Incra. Marcela Amaral, diretora de Articulação e Políticas Sociais da CNASI, explica: “Teve uma mudança no regimento interno do Incra que acabou com a divisão que era responsável por vistoriar terras e desapropriar, que era a antiga Divisão de Obtenção de Terras e Implantação de Projetos de Assentamento, ela acabou simplesmente porque não é prioridade mais se adquirir terras ou se desapropriar.”
Para Aguiar, essas políticas estão dificultando o acesso à terra para os pequenos produtores, o que pode gerar conflitos. Antes que o título seja entregue ao agricultor, a área é território federal do Incra, nessa condição, se o ocupante não tiver condições de produzir e não houver sucessores interessados na terra, o Incra pode repassá-la para outra família. Quando o título está nas mãos do produtor, há uma tendência de que ele eventualmente seja vendido e volte para latifundiários, que produzem majoritariamente para exportação. “Se houver venda de lotes, se houver redução da quantidade de assentamentos passados para famílias, uma das consequências é a redução da quantidade e da qualidade do alimento que chega na mesa do brasileiro”, afirma o diretor. Outra consequência que ele aponta é “a perda de renda e qualidade de vida das pessoas do campo, porque elas vão se tornar apenas serviçais, pessoas que fazem uma venda de serviço a custo muito baixo para ter um pedaço de chão para produzir.”
O assentado tem direito ao título e ele paga para ter a terra em um prazo estipulado em 20 anos. O problema acontece quando essa titulação é acelerada e feita antes que o agricultor tenha autonomia o suficiente para manter a terra. “A reforma agrária divide [grandes propriedades] em pequenos lotes para dividir entre dezenas, centenas e milhares de famílias. No processo inverso, as famílias vendem essa área para os grandes proprietários rurais, então se a entrega do título for feita de forma equivocada, sem valorizar vários aspectos nesse sentido, ela pode ser o inverso da reforma agrária: em vez de democratizar o acesso, ela faz a concentração rural”, diz Aguiar.
Para piorar, o diretor afirma que o Incra opera, hoje, com 66,6% do orçamento que tinha há 20 anos, mesmo atendendo mais cidades do que atendia à época. Além disso, relatos de assédio moral praticado por superiores têm sido comuns na instituição.
Futuro?
Conceição se preocupa com o cenário atual. Para ele, muitos agricultores que receberam títulos não terão capacidade de viabilizar a terra e acabarão vendendo-a e deslocando-se para beiras de estrada e periferias. “Pode ocorrer um processo de reconcentração de terra na mão de latifundiários.”
Esse processo de reconcentração está ocorrendo tanto por meios institucionais, quanto a partir da violência. “Nos acampamentos que eu ajudo a coordenar, já teve ataque de pistoleiro, já teve entrada da polícia querendo despejar os trabalhadores, então é uma área muito violenta, mas os trabalhadores têm achado maneiras de se manter em cima da terra para não serem despejados. Acho que o MST está certo em não entrar em conflito, principalmente com relação à pistolagem”, conta Francisco Moura, assentado no Pará e membro da direção nacional do MST.
Mesmo nesse cenário, Conceição olha com otimismo para o futuro: “Há um indicativo de avanço da política do latifúndio e de Bolsonaro, mas também há avanços organizativos e solidários do povo brasileiro de não só resistir ativamente, mas partir agora para uma ofensiva de ocupações de terra no próximo período.”
Também existem mecanismos legais de controle para evitar a concentração de terras. Carlos Guedes cita o dispositivo presente no Artigo 24 da Instrução Normativa nº 99, que limita a negociação do título para a incorporação de outros imóveis rurais que resulte em área total maior que quatro módulos fiscais. “É o suficiente para enfrentar uma tendência com essa força? Não é. Mas são iniciativas contra tendenciais que, com mecanismos de controle, com o Ministério Público e a própria consciência da sociedade civil, podem ajudar a fazer com que as áreas de reforma agrária não voltem a ser latifúndios”, diz o ex-presidente do Incra.
Em relação ao Incra, Marcela Amaral também aposta em organização social: “Nada é imutável. Apesar de a gente saber que a conjuntura está muito ruim, a gente ainda aposta que a organização dos trabalhadores no local de trabalho, seja para as suas questões específicas, seja em relação a essa questão das políticas do Incra, é o caminho.”
Fonte: Humanista / UFRGS, por Camila Pessoa